sexta-feira, 3 de abril de 2020

LITERATURA

Em tempos difíceis, multiplicam-se partilhas de textos, imagens, canções, gestos que nos dêem alento e nos façam refletir.
Já deves ter ouvido ou lido que, depois desta pandemia, tudo será diferente. 
Convidamos-te a ler o texto que partilhamos e que nele consigas encontrar semelhanças com o que estamos a viver e inspiração para a mudança que acontecerá, inevitavelmente.
É preciso fazermos um esforço para equilibrar o coração com a razão. FORÇA!
- Capitão, o menino está preocupado e muito inquieto devido à quarentena que o porto nos impôs.
- O que te inquieta, menino? Não tens comida suficiente? Não dormes o suficiente?
- Não é isso, Capitão. É que não suporto não poder ir à terra e abraçar minha família.
- E se te deixassem sair do navio e estivesses contaminado, suportarias a culpa de infectar alguém que não tem condições de aguentar a doença?
- Não me perdoaria nunca, mas para mim inventaram essa peste.
- Pode ser, mas e se não foi inventada?
- Entendo o que queres dizer, mas me sinto privado da minha liberdade, Capitão, me privaram de algo.
- E tu te privas ainda mais de algo.
- Está de brincadeira, comigo?
- De forma alguma. Se te privas de algo sem responder de maneira adequada, terás perdido.
- Então quer dizer, segundo me dizes, que se me tiram algo, para vencer eu devo privar-me de mais alguma coisa por mim mesmo?
- Exatamente. Eu fiz quarentena há 7 anos atrás.
- E o que foi que tiveste de te privar?
- Eu tinha que esperar mais de 20 dias dentro do barco. Havia meses em que eu ansiava por chegar ao porto e desfrutar da primavera em terra. Houve uma epidemia. No Porto Abril proibiram-nos de descer. Os primeiros dias foram duros. Sentia-me como vocês. Logo comecei a confrontar aquelas imposições utilizando a lógica. Sabia que depois de 21 dias deste comportamento se cria um hábito, e em vez de me lamentar e criar hábitos desastrosos, comecei a comportar-me de maneira diferente de todos os demais. Comecei com o alimento. Impus-me comer a metade do quanto comia habitualmente. Depois comecei a selecionar os alimentos de mais fácil digestão, para não sobrecarregar o corpo. Passei a nutrir-me de alimentos que, por tradição histórica, tinham mantido o homem com saúde.
O passo seguinte foi unir a isso uma depuração de pensamentos pouco saudáveis e ter cada vez mais pensamentos elevados e nobres. Impus-me ler ao menos uma página a cada dia de um argumento que não conhecia. Impus-me fazer exercícios sobre a ponte do barco. Um velho hindu me havia dito anos antes, que o corpo se potencializava ao reter o alento. Impus-me fazer profundas respirações completas a cada manhã. Creio que os meus pulmões nunca tinham chegado a tamanha capacidade e força. A parte da tarde era a hora das orações, a hora de agradecer a uma entidade qualquer por não me haver dado, como destino, privações graves durante toda minha vida.
O hindu tina-me aconselhado também a criar o hábito de imaginar a luz entrando em mim e tornando-me mais forte. Podia funcionar também para as pessoas queridas que estavam distantes e, assim, integrei também esta prática na minha rotina diária dentro do barco.
Em vez de pensar em tudo que não podia fazer, pensava no que faria uma vez chegado à terra firme. Visualizava as cenas de cada dia, vivia-as intensamente e gozava da espera. Tudo o que podemos obter em seguida não é interessante. Nunca. A espera serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso. Privei-me de alimentos suculentos, de garrafas de rum e outras delícias. Privei-me de jogar baralho, de dormir muito, de praticar o ócio, de pensar apenas no que me privaram.
- Como acabou, Capitão?
- Eu adquiri todos aqueles hábitos novos. Deixaram-me baixar do barco muito tempo depois do previsto.
- Privaram vocês da primavera, então?
- Sim, naquele ano privaram-me da primavera, e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.


Alessandro Frezza

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